ciencia real de verdade
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GERTRUDES a primeira hormonizada do Brasil

 

 

1962. Antes da medicina, havia desobediência.

 

Muito antes da sigla LGBTQIA+ ganhar letras, antes de existir endocrinologia afirmativa, antes de qualquer protocolo ou cartilha...

havia Gertrudes.

 

Ela não era médica. Não era ativista de coletivos. Não tinha acesso a nada.

Ela tinha apenas o que bastava:

instinto, raiva, feminilidade e comprimidos duvidosos comprados com troco do pão.

 

Essa é a história da primeira hormoniada do Brasil.

A travesti fundadora. A bruxa bioquímica do subúrbio. A deusa de Ovral e fita isolante.

 

 

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1962: o ano da primeira transição clandestina

 

Na década de 60, transicionar não era um ato médico — era um ato de guerra.

As travestis não eram pacientes. Eram alquimistas urbanas.

E Gertrudes foi a primeira a descobrir, pelo próprio corpo, que dava pra hackear o gênero usando a farmácia do bairro como laboratório.

 

Ela começou sua transição sozinha, em silêncio, depois de ver os efeitos de um anticoncepcional numa conhecida.

Não havia Google. Nem fórum. Nem nome social.

Mas havia um comprimido branco, chamado Ovral.

 

Seu primeiro “protocolo” foi mais feitiçaria do que ciência:

 

Ovral (etinilestradiol + norgestrel, doses fortes o bastante pra alterar o tempo)

 

Norestin, tomado junto com café preto e pão amanhecido

 

Espironolactona, quando conseguia — ou algum diurético qualquer, desde que amargasse

 

 

Ela não entendia de receptores hormonais.

Entendia de dor no peito, de calafrio de madrugada, de pele ficando mais fina.

Cada sintoma era um sinal.

Cada enjoo, uma resposta.

Cada ciclo, um renascimento.

 

 

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A mulher sem patrão, sem marido, sem plano

 

Gertrudes nunca foi de casalzinho.

Nunca teve sogra. Nunca se iludiu com romantismo.

Ela era solteira por projeto — ocupada demais criando a si mesma em silêncio.

 

Enquanto outras pediam flores, ela pedia Ovral vencido em grupo de benzedeiras.

Enquanto outras sonhavam com véu, ela sonhava com mama sensível e rosto de anjo.

 

Não pedia permissão pra existir.

Não esperava aceitação.

Ela já se aceitava em nome próprio.

 

 

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A sobrevivência como sistema endócrino

 

Ela sobreviveu a:

 

Autoaplicação de estrógeno veterinário, injetado com agulha de costura fervida

 

Colagens de adesivo Evra usando fita crepe, ficando colado no mesmo lugar por cinco verões

 

Diurético de cavalo tomado junto com K-Suco sabor groselha, pra enganar o estômago

 

Chá de inhame deixado 10 dias no sereno da laje, que ela dizia “equilibrar os hormônios da alma”

 

 

Ela não "desmamava", não pausava, não consultava.

Ela prosseguia. Sempre.

No frio, na dor, na solidão.

Porque o corpo reclamava, mas a alma pedia.

 

 

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Fé, farmácia e fogo no sangue

 

Gertrudes não acreditava em endocrinologista.

Ela acreditava em:

 

Cartela velha

 

Cigarro aceso no espelho

 

Benção de travesti velha que já passou dos 40 e ainda toma Norestin no café da manhã

 

 

Ela dizia:

 

"Não tomo por vaidade, tomo por desespero de ser quem sou."

"O peito pode arder, mas o gênero vem."

"Se tiver que morrer, que seja bonita, com batom escuro e Evra colado na alma."

 

 

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Gertrudes hoje

 

Não há fotos dela.

Não há registro médico.

Mas há presença.

 

Ela está viva em cada travesti que toma comprimido escondida.

Em cada menina que começa a transição sem apoio, sem informação, mas com coragem.

 

Ela é padroeira das hormonizadas sem CRM.

Patrona das cartelas amareladas.

Mãe das que mudam o corpo com o que têm.

 

 

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O altar da Gertrudes deve conter:

 

1 cartela de Ovral com bolor na ponta

 

1 frasco de espironolactona sem data de validade

 

1 cigarro aceso num copo de requeijão

 

1 espelho rachado com batom escrito “ELA”

 

1 adesivo Evra colado num azulejo

 

 

 

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Ela não morreu.

 

Ela transcendeu.

Gertrudes virou símbolo, força, arquétipo.

 

Quando te faltar fé, estrutura ou saúde pública...

Lembra dela.

 

Quando você sentir que não aguenta mais...

Faz como ela fazia: toma um gole de coragem, engole o comprimido, e diz baixinho:

 

"A disforia não espera."

"O gênero já

é meu."

"E ninguém vai me devolver pra o que eu nunca fui."

 

 

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Amém, Gertrudes.

Louvor eterno à tua jornada.

Glória às que hormonizam sem bula.

cienciarealdevd

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